sábado, 14 de maio de 2011

Leituras Obrigatórias da UFRGS 2012: História do Cerco de Lisboa

Crédito da imagem: confinshistoria.blogspot.com


Por Mário Sérgio Leandro

Personagens do romance:

        Raimundo Benvindo Silva: É o revisor de texto e protagonista do romance; e o seu nome ficamos sabendo somente na p. 27. Raimundo tem uma vida pacata e tranqüila no seu ofício de revisor de texto da editora. Certo dia, ao realizar a revisão do livro da História do Cerco de Lisboa, é acometido de um ‘certo mal’ e interfere na ideia central da obra: a indecisão dos Cruzados em auxiliar ou não el-rei no cerco da capital portuguesa para expulsar os mouros. Eis que Raimundo insere um NÃO na dúvida e altera totalmente a ordem da história e a manda assim para a produção. O interessante é que depois do episódio o dia a dia de Raimundo torna-se mais vivo mais agitado, ainda mais quando conhece Maria Sara, nova chefe dos revisores, pois se renova um não sei o quê dentro de seu peito. Maria Sara percebe que com NÃO inserido na história abre-se um precedente para a escrita de uma nova versão do cerco e que somente Raimundo o pode escrever.

        O Historiador: É quem escreve o livro sobre a História do Cerco de Lisboa, ele e Raimundo são amigos e é na conversa de ambos que começamos a ler o próprio livro de Saramago. O motivo da conversa inicial é sobre a tecla deleatur e a sua função. No início do romance, temos uma conversa  que vai do específico para o geral; pois tudo isso se origina a princípio da função dessa tecla. De uma certa maneira, esse exercício que Saramago realiza já nas primeiras páginas do romance segue até o fim do livro.

        O Costa: É o responsável de receber as cópias revisadas dos revisores e encaminha-las à produção. Depois da alteração feita por Raimundo, ele fica um pouco ríspido com esse. Raimundo fica realmente muito triste e envergonhado por passar para trás uma pessoa como o Costa.

        Maria Sara: É a profissional contratada para ser a chefe dos revisores depois do episódio da alteração de Raimundo. Quando Raimundo é chamado depois de “Treze longos dias” à editora para dar explicações sobre o ocorrido, ela está na sala junto ao diretor literário e ao diretor de produção; mas ela não é apresentada a Raimundo, o que deixa o revisor de texto muito inquieto.

        O Diretor Literário: É que recebe Raimundo e o chama à responsabilidade de responder pela alteração feita na obra. O diretor literário chega a afirmar que a alteração realizada pelo revisor não foi um erro; e sim, um procedimento deliberado, pois o NÃO escrito não tinha a forma de uma emenda, mas era muito parecido com a escrita do texto original.

        Senhora Maria (a mulher-a-dias): É a empregada doméstica quem faz a limpeza na casa de Raimundo. Quando Maria Sara passa a noite com Raimundo e ela vai ao quarto fazer a limpeza e sente o perfume de Maria Sara e também vê a casa arrumada, desconfia de que Raimundo esteja se relacionando com alguém.

       


Os personagens da obra História do Cerco de Lisboa.

        O Almuadem: Mouro, cego, o qual, todos os dias, chama o povo islâmico da cidade sitiada à oração, parece ser um guia espiritual; mas em nenhum momento Saramago ou mesmo Raimundo Silva o distinguem desse modo.
        El-rei Dom Afonso Henriques: É quem lidera os soldados católicos rumo ao cerco de Lisboa. Tenta implementar o cerco à cidade o quanto antes, pois têm problemas de ‘caixa’ para pagar um novo soldo dos soldados que lhe vence em dois meses.

        Mem Ramires: É um dos capitães dos soldados do cerco. Entre eles, havia muitos capitães estrangeiros: bretões, franceses, germânicos. Entre os soldados portugueses, no fim do romance, há um princípio de motim, pois os soldados portugueses querem a divisão e o pagamento do saque em partes iguais, pois morreram da mesma morte que os capitães estrangeiros e lutaram pela mesma vitória.

        Mogueime: É um dos soldados que lutam no cerco de Lisboa. Raimundo Silva identifica-se muito com essa personagem e, às vezes, coloca os seus próprios sentimentos na pele de Mogueime. Tive essa sensação quando Mogueime fala de sua paixão por Ouroana: parece não ser Mogueime que está a falar, e sim, Raimundo a falar de Maria Sara. Mogueime, no motim citado acima, fica sendo o escolhido entre os soldados para representá-los na discussão da divisão do saque à cidade, pois é mais bem esclarecido com as letras e a fala; o que surpreende, de certa forma, el-rei. Mogueime ganha fama e autoridade porque, na tomada da cidade de Santarém, seu corpo serve de escada para que os soldados subam ao adarve onde estão os mouros, tanto que ele conta essa história aos soldados mais novos no próprio livro.

        Frei Rogeiro: Faz às vezes de interlocutor e intérprete nas discussões entre os mouros e el-rei. Representa a Igreja.

A obra


        Ler Saramago é atentar para os detalhes do cotidiano os quais passam despercebidos na correria de uma vida urbana do nosso medíocre dia a dia. O início do livro história do cerco de Lisboa começa bem ao estilo de José Saramago. Surpreendentemente. A trama começa com a discussão entre o revisor de texto e o historiador sobre a edição do livro e sobre a função da tecla deleatur; demonstrando a genialidade do autor e nos mostrando o nascedouro de um texto e do livro: a tipografia; os bastidores da edição e revisão textual. A discussão começa bem divertida até porque tanto revisor como historiador, a partir da função da tecla deleatur, vão a fazer discussões filosóficas, num ir e vir sobre a vida de ambos. Isso tudo acontece num tipo de preâmbulo da obra, pois a obra de Saramago não possui as divisões clássicas: introdução, capítulo I, índice, etc. Não espere uma obra normal – não de José Saramago, mas é aí que surge um dado importantíssimo o qual irá desenrolar-se durante todo o resto da obra: a influência das “emendas” realizadas no texto pelo revisor; e de todo o conhecimento e suporte que requer o exercício dessa profissão. A discussão é bem interessante e o leitor deve lê-la como se essa fosse uma apresentação que o autor faz ao seu leitor, pois Saramago coloca-se assim no texto, não apenas como mero narrador isento; não, mas como uma pessoa a qual traz toda a cotidianidade dos detalhes de nossas vidas para um texto sério e adulto; porém não menos divertido, leve e também responsável do ponto de vista da leitura. Então, precisamente, essa é a introdução da obra: a discussão a respeito da função da tecla deleatur e suas implicações de uso – não somente no texto –, mas também na vida das pessoas, inclusive de revisores e historiadores e as emendas que são feitas no próprio texto.

        Para quem ainda não leu nenhuma obra desse grande escritor português, talvez venha a surpreender-se com a forma do texto: ele não usa muito o ponto final para encerrar as frases; e os diálogos não são demarcados de forma clássica: “A senhora precisa de mais alguma coisa?” “Não, muito obrigada”. Esqueça esse formalismo; isso faz parte do autor, é uma característica dele. Pois bem, o nome do nosso revisor de texto, o qual somente vamos saber algumas páginas bem adiante (p. 27), chama-se Raimundo Benvindo Silva, e ele tem o livro História do Cerco a Lisboa para formatá-lo e entregar ao Costa, chefe da produção da editora para qual Raimundo trabalha e assim como:

“Aristóteles dissera que as moscas possuem apenas quatro patas (apesar de as crianças comprovarem que as moscas possuem seis), o revisor não lerá todo o livro para entregá-lo na manhã seguinte, pois o sacrifício não o apetece e foi tomado pela antipatia pela obra e pelo autor”, p. 38.

Outro aspecto interessante que merece ser apontado é a análise de Raimundo sobre de como se produz a história:
“Machado, crédulo, copiou sem conferir o que haviam escrito Frei Bernardo de Brito e Frei António Brandão, é assim que se arranjam os equívocos históricos, Fulano diz que Beltrano disse que de Cicrano ouviu, e com três autoridades dessas se faz uma história”, p.39.

Talvez tenha sido essa situação que tivesse mexido com Raimundo desde o começo da revisão e daí a sua antipatia pela obra e pelo autor. Os cruzados analisam a situação do cerco à cidade e se ajudam ou não no combate aos mouros; o texto diz que os cruzados sentiram-se diminuídos em ter de lutar no território português, pois foram treinados e se prepararam para defender e resgatar a Terra Santa e aquilo, de certa forma, era uma humilhação e aí temos também uma característica da narrativa: Saramago nos conta um pouco da História do Cerco de Lisboa e do impasse dos Cruzados no auxílio à cidade; conta-nos também sobre os acontecimentos da vida de Raimundo. Então, temos um vai e vem no texto em que o leitor precisa ficar atento a esses detalhes, pois assim é muito fácil perder-se na narrativa.

Aqui temos um fato interessante: depois da conversa com o autor da obra, Raimundo é tomado por um sentimento de repulsa pela obra e pelo o autor, mas ele continua a ler o livro e é aí que acontece algo bem diferente: Raimundo faz uma emenda a qual dará ao livro um desfecho completamente diferente daquele que seu autor projetou à obra. Raimundo coloca um NÃO na sentença: “e os cruzados decidiram que os portugueses NÃO terão a sua ajuda”. O que não estava escrito e ele o faz deliberadamente. Saramago, para deixar o episódio mais divertido, compara a situação de Raimundo e o seu conflito em emendar ou não o trecho do livro com um outro clássico da literatura universal: Dr. Jekylll e Mr. Hyde, o médico e o monstro. E a partir daí parece que o cerco à cidade começa a fazer parte da realidade de Raimundo, pois após a entrega da cópia ao Costa, segue-se uma verdadeira recontagem da história. O revisor de texto, ao ter consciência da alteração feita, não permanece em casa no dia seguinte após a entrega da cópia revisada, vai à Leiteria A Graciosa, faz um lanche e procura não ficar em casa para não ter de atender a qualquer telefonema e presenciar uma possível visita do Costa.

Crédito da imagem: ciadasletras.com

Nisso, dá-se uma fuga em direção aos muros que cercam a cidade e, ao passar pelas ruas e perceber a fisionomia das casas, é trazida às lembranças de Raimundo os fatos lidos no livro História do Cerco de Lisboa. Ao fugir de casa, sente-se como um Cruzado em não querer ajudar a cidade, pois se encontra fora dos muros da cidade. Nesse passeio, Raimundo vê o quanto fora “cego” (como o almuadem, cego, que chama os mouros às orações no alvorecer de cada manhã) de não conhecer a sua própria cidade, pois a conhecia somente dos livros, mas de que o adianta: se não a vive, se não a tem nas mãos, nos olhos, e poder dizê-la: minha cidade. Na sua caminhada, encontra uma cigana pedinte e os olhos dela mostram a Raimundo que o cerco ainda não acabara; não o cerco à cidade, mas o cerco da pobreza e discriminação que ainda existem. Não só em Lisboa, mas em todos os lugares sob a égide do capitalismo. Outro aspecto interessante: como os cegos têm participação na obra de Saramago: o almuadem cego, a Rua dos Cegos, os três fantasmas cegos (o que foi, o que esteve para ser e o que poderia ter sido); apesar de Ensaio sobre Cegueira não ser também uma leitura obrigatória, podemos ver aqui um possível indício de uma questão envolvendo a temática da cegueira ou a acessibilidade. Ainda com o passeio, ao longe, Raimundo vê a localização de sua casa e não sabe se no passado distante a sua casa fora sitiada ou sitiante, demonstrando a profunda relação do revisor de texto com a História do cerco de Lisboa.

Passados 13 dias depois da entrega das cópias, Raimundo é chamado à editora para explicar-se sobre o ocorrido: como um revisor tão dedicado, tão sério, tão responsável, foi capaz de fazer tamanha desonra à editora? E quanto à errata que a editora teria de fazer: “onde se lê não, não se leia não, leia-se sim”. Todo esse tempo de trabalho, a confiança, como pode? Apesar disso, Raimundo não é demitido, possibilidade que, até o meio da conversa com o diretor literário, era o mais evidente desfecho. Na reunião, ele fica sabendo que todos os revisores de textos terão como chefe a Sra. Maria Sara, a qual fica à parte da discussão entre Raimundo e o diretor literário e o diretor de produção. Ela manifesta-se somente quando ambos citam a conversa entre Raimundo e o historiador sobre a função da tecla deleatur, a qual ela havia desconhecer. Raimundo escreve uma carta de desculpas para o autor do livro, fica incomodado com a presença de Maria Sara, a qual somente será apresentada ao Sr. Raimundo mais tarde como tal, num telefonema ao mesmo. Recebe a ligação da editora e Maria Sara o chama para uma reunião, Raimundo fica agitadíssimo, passa tintura nos cabelos, em que Saramago diz que “a Estética é rainha, rei e presidente”, fazendo alusão a uma característica pós-moderna: o parecer ser.

No encontro com Maria Sara, Saramago para a narrativa para analisar os movimentos e trejeitos de ambos, em que Raimundo recebe da chefa dos revisores, um livro sem a errata, alegando que Raimundo, quando fizeram a emenda que dera um contexto completamente diferente daquele que o autor pensara ao livro, escrevera outra história, também era um autor. Raimundo recebe-o como sinal de troça (ridicularização) da chefa para com ele; dizendo a ela que era revisor, que não era autor, que não o chamasse ali para isso, fica perturbado novamente. Depois disso, Raimundo sente-se como um estranho dentro da própria casa, é preciso andar pelos cômodos da casa até reconhecer-se como antes. Analisa o único exemplar sem a errata e sintetiza: “um livro só tem um dono; um dono que não pode querer a mais ninguém”. Raimundo reflete sobre os acontecimentos e é tomado de uma energia revigorante diante da contemplação da cidade a partir da janela do seu escritório num dia de chuva. Saramago faz uma contagem do tempo, mas não esse tempo ordinário: dias, semanas, meses... Faz uma aproximação de quanto temos ficamos à janela a contemplar o dia, o rio, o céu, essas coisas mais simplesmente humanas a que não fazemos mais.

Raimundo decide escrever um livro, uma nova versão da História do Cerco de Lisboa, e isso talvez seja o que tinha em mente Maria Sara ao dar-lhe um exemplar do livro sem a errata, como uma forma de estímulo, pois a emenda NÃO não foi apenas uma emenda, mas o seu sentido dá vazão a uma nova análise e possível reescrita do episódio, pois há muitos itens que não estão muito claros na obra primeira. E Saramago faz essa análise e isso dá subsídios para Raimundo realizar a empresa. Raimundo sente uma vontade enorme de sair à rua, procurando indícios que possam lhe fornecer para a escrita da nova versão. Tem dificuldades de iniciá-la e a partir do NÃO começa a relacionar os pormenores do fato histórico.

Creio que Raimundo apaixona-se por Maria Sara, mas esse sentimento é algo que ele não compreende que o seja; e ela não acredita que o possa existir, até o episódio do toque na rosa branca. Maria Sara fica tocada com o gesto de Raimundo na rosa branca. Depois disso, fica Raimundo, a saber, que a senhora Maria Sara está doente, fica um tanto nervoso e sem jeito de solicitar o número do telefone à telefonista da editora, mas acaba pedindo e decide ligar de casa; mas não liga. Ao chegar em casa, fica adiando o momento em que deveria ter ligado, mas novamente não liga. A senhora Maria mulher-a-dias deixa um recado para que ele retorne a ligação no número anotado: é o mesmo número que tem no bolso – o de Maria Sara. Ele liga; os dois conversam e daí em diante começam a ter um relacionamento que vai crescendo junto com a nova versão da História do Cerco de Lisboa. Em algumas partes da nova versão, vemos algumas semelhanças no desenvolver da trama e no desenvolvimento da relação de Raimundo e Sara, quando do exemplo de que não sabe se Ouroana irá querer ficar com Mogueime, pois Mogueime é somente um soldado e não chegará a capitão, mas Maria Sara percebe que ele não está a falar de Ouroana, mas sim dela mesma em relação ao seu novo relacionamento. Aqui Saramago faz uma crítica ao machismo na fala de Maria Sara.

Ambas as histórias vão se desenvolvendo, a cidade é retomada, e assim termina a obra:

        “São três horas da madrugada. Raimundo pousa a esferográfica, levanta-se devagar, ajudando-se com as palmas das mãos assentes sobre a mesa, como se de repente lhe tivessem caído em cima todos os anos que tem para viver. Entra no quarto, que uma luz fraca apenas ilumina, e despe-se cautelosamente, evitando fazer ruído, mas desejando no fundo que Maria Sara acorde, para nada, só para dizer-lhe que a história chegou ao fim, e ela, que afinal não dormia, pergunta-lhe, Acabaste, e ele respondeu, Sim, acabei, Queres dizer-me como termina, Com a morte do almuadem. E Mogueime, e Ouroana, que foi que lhes aconteceu, Na minha ideia, Ouroana vai voltar para Galiza, e Mogueime irá com ela, e antes de partirem acharão em Lisboa um cão escondido, que os acompanhará na viagem, Por que pensas que eles se devem ir embora, Não sei, pela lógica deveriam ficar, Deixa lá, ficamos nós. A cabeça de Maria Sara descansa no ombro de Raimundo, com a mão esquerda ele acaricia-lhe o cabelo e a face. Não adormeceram logo. Sob o alpendre da varanda respirava uma sombra” p. 319.


Crédito da imagem: professortinoco.blogspot.com
A leitura desse texto não substitui a leitura integral do livro. A próxima resenha a ser publicada aqui será Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

Deixe o seu comentário sobre o texto; ajude-nos a fazer um texto bem completo para quem vai prestar o vestibular no fim de ano.

Boa Leitura e Abraços


Leia também o resumo do vestibular OUL

5 comentários:

  1. Thanks! Mr Bibliotecário
    muito útil mesmo..

    ResponderExcluir
  2. Muito bom, me ajudou um monte, li o livro no início do ano mas agora ficou tudo muito mais claro, parabéns

    ResponderExcluir
  3. Um ótimo livro, que leva uma complexidade razoável.Porém este teu resumo/análise ficou excelente e pude relembrar os personagens e o enredo. Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Qual seria as caracteristicas da obra? tipo a temática...

    ResponderExcluir
  5. Com certeza é um romance histórico com uma temática de análise dos discursos e produção historiográfica. Essa é a minha suspeita. Abraços

    ResponderExcluir