Em mais um dia escaldante de outono carioca, Otávio Júnior sobe a íngreme Rua Nova, no Morro do Caracol, Complexo da Penha. Ágil, acostumado a circular na favela onde nasceu, há 27 anos, o negro de 1,74 metro e 60 quilos quase corre, mesmo com o peso das garrafas de refrigerante que carrega em sacolas plásticas de supermercado. O cansaço se esvai assim que ele chega ao prédio de dois andares que antes abrigava o forró da favela. Ao ver 15 crianças lendo livros e gibis, larga as sacolas, saca a câmera digital e clica a cena. "Ver essa imagem era o meu sonho", diz.
A euforia de Otávio tem motivo. É dele a ideia de criar a primeira biblioteca dos Complexos da Penha e do Alemão - área que reúne cerca de 400 mil moradores, conflagrada pelo tráfico de drogas e conhecida como uma das regiões mais violentas do Rio até novembro de 2010, quando foi ocupada.
A inauguração será no dia 23. Na última sexta-feira, quando a equipe do site de VEJA esteve no local, o clima ainda era de improviso - a placa com o nome "Barracoteca Hans Christian Andersen", uma reverência ao escritor dinamarquês, nem havia sido pendurada. Mas a promessa é que tudo esteja pronto para as comemorações, que começam nesta segunda-feira. A data não foi escolhida ao acaso. No dia do livro infantojuvenil, as portas serão abertas para as crianças da favela e o escritor Monteiro Lobato será homenageado.
O espaço, com cerca de 20 metros quadrados, é simples, mas chama atenção pelo intenso colorido de paredes, pufes, cadeirinhas e bancos. "As crianças ficam encantadas com o colorido dos livros. Por isso, quis ter um espaço também colorido, agradável. Quero que o público se sinta em casa", conta. Nas estantes, obras de autores como Lima Barreto, Clarice Lispector, Lygia Bojunga, Eça de Queiroz e Cora Coralina.
A doação do acervo de 1.200 livros e parte dos equipamentos foi do Ministério da Cultura. Inicialmente, a "barracoteca" vai funcionar como um ponto de leitura da favela. A intenção é, após três meses, iniciar o empréstimo de livros para os moradores.
Na estante, autores como Balzac, Lima Barreto, Manuel Bandeira e Eça de Queiroz |
Aos poucos, conseguiu o suporte de ONGs e escolas para montar mini-bibliotecas. Depois, sentiu o gostinho do reconhecimento: ganhou 10.000 reais do programa Caldeirão do Huck, da TV Globo, em 2006, e o prêmio Faz Diferença, do Jornal O Globo, em 2008. Acabou ganhando o apelido de "Livreiro do Alemão".
Atualmente, conta com o apoio de dois mantenedores. Em 10 anos, o projeto que começou com uma mala velha já atendeu mais de 10.000 crianças. "Me desestimulavam quando eu andava para lá e para cá com minha mala. Evoluí da mala para a biblioteca móvel e agora estamos aqui, dentro dessa biblioteca", celebra Otávio, que acabou de lançar um livro contando sua trajetória - O Livreiro do Alemão (Otávio Júnior, Editora Panda Books, 79 páginas, 17 reais).
Ambicioso, ele já olha para frente. Diz que pretende montar um centro cultural na favela e dar palestras de incentivo à leitura em empresas. E que seu maior sonho é ver uma biblioteca em cada esquina. "Sou um visionário", admite. Enquanto isso, treina mediadores de leitura para, tal qual em uma prova de revezamento, passar o bastão - nesse caso, a mala vermelha. "Até agora, desenvolvi uma atividade solitária. Não dá mais. A minha proposta é formar novos livreiros do Alemão".
Fonte: VEJA
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